MEMÓRIAS QUE NUNCA MORREM
Eram três. Apearam-se do jeep que os trouxe de Tete cientes do medo que incutiam onde quer que chegassem. Pertenciam à DGS, a ex- Pide, simbolicamente extinta de nome mas cujos métodos de persuasão continuavam a ser os mesmo. Um era alto, uma grande cicatriz no rosto, espalhando arrogância no andar e no rosto duro e quase inexpressivo, a quem eu logo chamei de múmia. O segundo era baixo, baixo mas atarracado, mãos largas, olhar vivo. O terceiro era magro, e tinha nas mãos, qual brinquedo muito estimado, uma régua idêntica àquela que todos nós conhecíamos na escola…
Dois dias antes dois pelotões nossos, a caminho da Rodésia, sofreram uma emboscada vinda do aldeamento situado a uns 30 quilómetros do quartel, e agora eles vinham para interrogar os aldeões donde partiu a mesma e daí, se possível, descobrir pistas dos turras. Todos sabíamos que estes, tal como nós, andavam por lá em acção psicológica. Agora tínhamos a certeza: a guerra tinha começado precisamente dois dias atrás.
Nessa manhã de Junho de 1971 estava um dia com muito sol. Meiga e suave corria uma brisa. Quando chegámos à povoação era quase meio-dia, e quase todos os habitantes da povoação estavam sentados à entrada de suas cabanas sem imaginarem o inferno que os esperava. O agente da DGS, a tal múmia, reuniu-os a todos perguntou em dialecto quem tinha ajudado os turras a atacar a tropa. Ninguém se mexeu, ninguém proferiu uma sílaba que fosse. O baixote, olhar vivo, falou e Insistiu, precisava de saber ou todos pagariam por isso. E, como resposta, o mesmo silêncio, aquele silêncio que fere a mente só em se tentar adivinhar… E o inferno começou! Um a um, e em separado, todos os rapazes e homens da aldeia foram interrogados. E nada confessaram. A resposta era sempre a mesma: nada sabiam! Até que chegou a vez daquele homem de cabelos esbranquiçados, rosto fino e corpo cansado. Fizeram-lhe a mesma pergunta de sempre:
- Ajudaste os turras? E a resposta saiu fraca: não patrão! O coitado homem estava no meio dos três agentes. O da cicatriz deu-lhe um soco no estômago que o fez rodopiar. O segundo um pontapé nos joelhos, e o terceiro, com a sua régua bateu-lhe nos cotovelos. E o interrogatório continuou por longos e eternos minutos… Em mim uma revolta tremenda pela cena que era obrigado a presenciar. Ao fim de algum tempo, e devido a tanta pancada, o pobre negro já não podia fechar as mãos de tão inchadas que estavam. Pedia água, e em vez de lhe dar de beber davam-lhe cada vez mais porrada. Por fim, já cansados e sem resultados, os três homens da DGS pararam, deixando estendido no chão o desgraçado do aldeão.
Então nossos olhares cruzaram-se. Seus lábios tentavam balbuciar “mazzi”, precisava de beber, mas as forças não o permitiram. Então de repente, sem me dar conta, num gesto instintivo e súbito, aproximei-me dele, soergui-lhe um pouco a cabeça e dei-lhe de beber água do meu cantil. Ele olhou para mim, surpreendido e agradecido, um sorriso leve e mortiço escrito em seus lábios. E, sempre a olhar para mim, um brilho que não mais poderei esquecer em seus olhos, ele morreu. Morreu em meus braços!
Quarenta anos depois, toda a vez que recordo esta cena tão funda da minha guerra em Moçambique, o coração ainda estremece e os olhos ficam embaciados…
(21 de Abril de 1971, faz hoje 40 anos que embarcamos no Miassa, para aquele que seria o maior flagelo das nossas vidas).
Memórias de Vitalino Cara D'Anjo/ Escritas por Alfredo Maioto